sexta-feira, 21 de outubro de 2016

CUNHÃ GUARANI



Por decisão do cacique, toda a aldeia se moveu para quilômetros acima do rio que chamavam de Itinga. Precisavam de mais caça e pesca. Encontraram uma clareira na margem sul, enquanto a densa floresta ficava ao norte.
Aruana estava agachada ao lado de uma canoa, pintava-se com tinta do jenipapo. Não traçava finas linhas próprias de donzelas, mas sim, grossas figuras como de guerreiros.
Algo se mexeu no mato atrás da menina que imediatamente pegou seu borduna do chão e assumiu uma postura de batalha. Manteve-se abaixada, uma mão no chão, o tacape na outra.


— O que pensa que está fazendo se pintando desse jeito? — Perguntou Ubatã, irmão de Aruana.
— Não é da sua conta.
Ela se virou para retornar ao que fazia. Era uma linda menina de onze anos, pele morena e longos cabelos negros. Magra e o corpo ainda infantil.
— Você não pode se pintar assim e essas armas, onde conseguiu? — Ubatã reparou que ela também possuía um arco com flechas, todos ordenados com penas em preto, azul e vermelho.
— Eu mesma fiz.
— Você tinha que fazer redes e cestos.
Aruana pegou o borduna e o apontou para o irmão. A arma tinha empunhadura com palha trançada e pequenas plumas enfeitando.
— Faço arma melhor do que você, lute comigo, se ganhar eu volto para a oca.
— Não vou brigar com mulher.
— Não vai ter coragem. Sempre perdeu todas as nossas brigas.
— Você ganha, porque é dois anos mais velha.
— A idade não importa, o espírito guerreiro sim.
— Então lute com o Ubirajara, ele é três anos mais velho que você e homem.
Ela teria coragem, ainda que a derrota fosse quase certa. Ubirajara era o jovem guerreiro mais promissor da tribo, mas ela não se dobraria à vontade dele só por ser homem.
— Não preciso lutar com nenhum de vocês.
Ubatã insistiria em repreender a irmã, mas foi interrompido por outra pessoa que aparecia ali. Era Acir, o irmão de apenas seis anos.
— Você devia cuidar dele.
— Vou cuidar de mim e vocês voltem para a aldeia. — Disse ela pegando o arco e flecha e colocando todas as armas na canoa.
— Onde pensa que vai?
— Caçar.
Aruana tentou empurrar a embarcação e foi interrompida por Ubatã que saltou sobre ela usando o peso dos dois. Caíram no chão. Ao ver aquilo, Acir pulou sobre eles também. Ela não teve coragem de bater em alguém tão novo e se levantou.
— Eu vou caçar e ninguém vai me impedir.
— Se você vai para a mata eu vou também. — Disse o irmão que pegou o mais novo e o colocou na canoa.
— O que é isso?
— Eu sou o filho homem mais velho e sou o responsável por você, ele é o filho mais novo e você deveria cuidar dele, então vamos todos para a mata.
— Tudo bem, busque seu arco e flecha.
Ubatã riu. E começou a empurrar a canoa.
— Se eu for buscar minhas armas você vai deixar o Acir aqui e vai atravessar sozinha.
O irmão mais novo cambaleou até a ponta e o outro subiu o mais rápido que pôde. Aruana pulou para dentro da canoa também. Usou uma vara para guia-los e logo chegaram ao outro lado.
— Fique com o borduna que eu fico com o arco. — Disse ela entregando uma das armas ao irmão. — Atiro melhor do que você.
Ubatã pegou o tacape com um solavanco e fechou a cara depois disso.
— Está com fome? — Perguntou a irmã.
— Ainda bem que não. — Ubatã deu de ombros. — Você vai demorar horas para conseguir alguma coisa.
— É que cara feia para mim é fome.
Ele a olhou com ódio e segurou forte o borduna. Ela abriu os braços e firmou os pés. Acir passou correndo e gritando. Queria espantar um quati que andava no chão.
— Cala a boca menino, vai espantar todos os outros animais também..
Ubatã se limitou a gargalhar.
— Silêncio você também, não preciso da sua ajuda, mas não me atrapalhe. E vá buscar o Acir, fique de olho nele.
Ubatã não obedeceu e deixou o irmão livre. Aruana se abaixou e procurou por rastros de animais. Ela já tinha caçado nos arredores da antiga aldeia, mas a nova mata era muito mais densa.
Era fim de tarde quando a curumim resolvera caçar, teve que ajudar a mãe em diversas atividades típicas das mulheres na tribo e só teve tempo de fazer o que queria ao fim do dia. Tinha que ser rápida, não estava preparada para ficar na floresta durante a noite e se demorasse demais apanharia do pai com certeza.
Os irmãos fizeram silêncio e andaram por perto de Aruana que entrou cada vez mais fundo na mata. Ainda que não ouvisse barulho de água, percebia cada vez mais o coaxar de sapos e se incomodava com aquilo. Não estava de noite e os bichos não se comportam assim naturalmente.
— Ainda não vi nenhum rastro de bicho no chão. Reparou que quase não tem peixe no rio? Essa floresta é estranha. — Disse Ubatã.
— Fica quieto, eu não vou desistir.
— Os mais velhos não caçam por aqui, eles vão para o outro lado, nunca vi nenhum deles nessa mata.
— Eu sei, Ubatã, por isso vim para cá, não quero que eles me vejam e digam que não posso caçar ou me pintar assim. Atiro melhor do que qualquer um deles com o arco e flecha, sei lutar e fazer armas, mas não posso caçar ou guerrear por ser menina. Se eles não deixam, eu faço sozinha. Agora cala a boca.
Embrenharam-se ainda mais, tudo que viam eram cobras, lacraus e aranhas. O coaxar também se mantinha.
— Nunca vi uma mata assim, Aruana. Quase não conseguimos ver o céu de tão fechada e não tem animais aqui, só insetos.
Ela também achava estranho, mas não assumiria o medo. Não voltaria de mãos abanando para a aldeia. Seria vergonhoso demais.
— Se está com medo, leva o Acir e me deixe sozinha.
— Você não vai caçar nada aqui.
— Você fala isso só porque sou mulher.
— Falo isso por causa da mata estranha e você não é mulher, é menina. Será mulher quando seu primeiro sangue descer e então casará com um homem mais velho. Tomara que ele te coloque no seu devido lugar.
As palavras a acertaram em cheio. Ela odiava a ideia de ter que se casar porque os pais mandaram e ficar em casa cuidando de marido e meninos. Queria andar pelas matas, caçar e guerrear, mas assim que se tornasse mulher, nem fugir e brincar de caçadora seria possível.
Ela ficou calada daquela vez. Não tardaria a sangrar e isso era o que mais a perturbava. Estava quase completando doze anos e nenhuma das meninas da tribo chegou as treze antes de se tornar moça.
Por mais que doesse, Aruana teria que desistir, estava ficando escuro e precisavam voltar ou todos enfrentariam parte da noite na mata. Faltava criar coragem e se preparar para ouvir as provocações do irmão.
— Vou pegar o Acir e voltar, pode se arriscar mais se quiser, eu não ficarei nessa floresta estranha de noite. — Disse Ubatã.
A menina sentiu um alívio enorme, poderia concordar com ele e voltar dizendo que fazia aquilo pela segurança deles. Seria um empate e manteria o orgulho.
Antes que dissessem qualquer outra coisa, Acir começou a correr mata adentro. Se enfurnou por arbustos densos e disparou sem dizer nada.
— Volta aqui! — Gritou Aruana perseguindo-o.
Ubatã correu atrás deles também. O caminho que o mais novo utilizava atrapalhava os mais velhos e ele se distanciou. Após minutos de corrida chegaram em uma clareira perto da entrada de uma gruta.
O sol já se punha e tudo que Aruana conseguiu ver foi o pequeno Acir entrando na gruta. Ela olhou para trás e viu que o outro irmão a seguia. Então manteve o curso e foi conferir a caverna.
Ouviu barulho de um riacho que corria no fundo da gruta, o som dos sapos era mais alto ali dentro. Após descer por um caminho úmido e escorregadio. No fundo da gruta, ela viu uma enorme panela de barro em cima do fogo e o irmão parado do outro lado com o olhar estranho e uma cobra enrolada na mão.
Antes que pudesse gritar, uma sucuri caiu sobre ela e se enrolou no seu corpo. Apertou a menina que gritava e tentava se soltar. Foi em vão. Pouco tempo depois desabou no chão.
Horas se passaram até que Aruana recuperou a consciência. Estava amarrada e presa em uma cela de bambu e cipós. Observou a gruta e viu mais duas jaulas onde os irmãos estavam. Eram baixas e pequenas, eles não conseguiram ficar de pé e mal poderiam se mexer.
Ao centro de tudo estava a grande panela de barro onde se podia cozinhar duas capivaras inteiras. No fundo, o riacho fazia barulho. Inúmeras cobras rastejavam pelo chão, escorpiões andavam pelas paredes e os sapos coaxavam.
Vinda do escuro, como se aparecesse do nada, uma mulher se mostrou a Aruana. Uma velha índia de rosto enrugado, nariz adunco, parcos cabelos compridos que desciam abaixo da cintura. Andava nua com os seios caídos, pele ressecada e usava adornos de couro de jacaré nos braços e calcanhares.
— Não tenha medo criança. — Disse ela ao deixar uma pequena cobra no chão que rastejou até a menina.
Quanto mais a cobra se aproximava, mais a curumim se contorcia. Batia os pés no chão tentando espantá-la e gritava.
— Ninguém pode te ouvir aqui e seus irmãos não acordarão enquanto eu não deixar.
A cobra se grudou na curumim causando muita dor, mas não inoculou veneno. Estranhamente, ela foi capaz de sugar sangue ao invés de despejar peçonha.
Assim que terminou o serviço ela voltou para a velha índia que a segurou com as duas mãos e a partiu ao meio. Aruana se contorceu enquanto a mulher tomava o sangue da cobra.
— Muito bom. Como eu imaginava. Você é especial. — Disse limpando um fio de baba e sangue que escorria pelo lábio inferior.
Aruana se manteve calada e assustada.
— Meus insetos disseram a verdade, você é como eu, uma índia de força e poder que será sufocada pelos homens da tribo e desperdiçará todo o seu potencial.
A menina não entendia nada daquilo.
— A diferença é que você possui força física e alma de guerreira, eu possuo força espiritual e dons de xamã. Não tenha medo de mim, pequena, somos iguais. Eu queria ser o pajé da minha tribo, teria curado muitas pessoas e salvado vidas, mas não pude, pois sou mulher. Você poderia se tornar um cacique inigualável, mas nunca será, porque também é mulher. Junte-se a mim, seja minha cacique e me ajude a criar uma tribo como nunca se viu.
A proposta era tentadora, Aruana podia se ver como uma líder justa e vitoriosa.
— O que tenho que fazer?
— Mate os seus irmãos.
— Você é louca, eu nunca machucaria eles.
— Você é jovem demais e não percebe a verdade. O que acha que aconteceria se fosse o contrário? Seus irmãos não te venderiam por força e poder? O que sua tribo faria se tivesse que escolher entre você e eles?
— Eu sou uma guerreira, luto pelo bem da minha família e da minha tribo, não posso fugir e deixar eles morrerem.
— Eu faço um trato com você. Deixo sua tribo viva e você mata apenas os seus irmãos.
— Eu não matarei ninguém.
— Veja, criança. — A bruxa abriu os braços e a fogueira aumentou de tamanho iluminando toda a caverna, centenas de cobras apareceram, cascavéis, jiboias, sucuris, dentre outras, todas ameaçadoras. — Eu posso matar todos vocês se eu quiser. Seu destino já é meu, agora escolha o deles. Mate seus irmãos e você e sua tribo sobrevivem, ou não faça nada e todos morrem.
A velha sumiu na escuridão da gruta. Aruana não sabia o que fazer, por mais que brigasse com eles, amava os irmãos. Odiava ser obrigada a se casar e não poder guerrear, mas não queria que toda a tribo morresse.
Assustada, inquieta e preocupada, não conseguiu dormir. Entre uma remexida e outra achou uma pedra caída perto de sua cela. Imaginou que se a alcançasse, poderia usá-la para roer os cipós.
Forçou a grade de bambu tentando não fazer barulho. A cela não era tão resistente, o que a preocupava era fazer som suficiente para chamar a velha.
Com cuidado ela alcançou a lasca cortante. Passou algumas horas roendo as amarras que tinha em si e outras da cela até se sentir segura para fugir.
A fogueira já tinha se extinguido e ela notou que estava amanhecendo. Quebrou alguns bambus e saiu da cela. Olhou para os irmãos e quis ajuda-los, mas cascavéis começaram a chacoalhar o rabo e ela não teve coragem de ficar ali.
Aruana correu por sua vida e saiu da caverna, entrou na mata fechada e continuou fugindo. Quando se deu conta já era manhã, ela estava perdida e desarmada.
Passou a caminhar segurando o choro e disfarçando o desânimo. Não tinha conseguido caça no dia anterior, havia fugido e abandonado os irmãos. Estava com fome e arrependida.
Pouco tempo depois ela viu arbustos se mexendo e notou ser uma onça-pintada. Estava desarmada e o melhor era fugir, foi o que Aruana fez. Agachou-se no mato, torcendo para que ainda não tivesse sido farejada e depois subiu numa árvore. Perdeu o contato visual com o felino e preferiu esperar algum tempo até descer novamente.
Distraída e com sono, a curumim não percebeu que a onça subiu na árvore e pulou para um galho atrás dela e a ficou observando.
— Tenha calma. — Disse uma voz estranha e animalesca.
A menina se virou e quase caiu quando viu o animal.
— Não precisa ter medo de mim. — Disse a onça.
Aruana não conseguia acreditar que o felino falava consigo. Tudo que fez, foi reparar que ele usava um colar de palha e penas.
— Eu só quero te ajudar.
— Não preciso de sua ajuda. — Foi tudo que a mente assustada conseguiu formar.
— É o mesmo que você falou para o seu irmão ontem e onde ele está?
Ela não quis responder.
— Você se diz uma guerreira, mas quando teve que enfrentar o perigo, fugiu e deixou dois companheiros para trás.
— Foi culpa da velha, ela disse que mataria toda a aldeia se eu não matasse meus irmãos.
— Você fugiu, ela continua viva, seus irmãos presos e a aldeia em perigo. Sua atitude não alterou nada.
Aruana não sabia o que dizer.
— Todo líder guerreiro passa por decisões assim ao entrar em batalha. Se você insistir em atacar uma tribo mais forte que a sua, pode perder homens demais e não conseguir defender a aldeia em caso de contra-ataque. Por outro lado, se recuar muito cedo, pode condenar os que já estão lutando. Ser um cacique é ter que decidir sobre quem vive e quem morre.
— Eu não tinha mais arma, como poderia enfrentar uma bruxa e todas aquelas cobras?
— Você não conseguiria vencer ela, isso é verdade. Também não estaria nessa situação se não tivesse insistido em entrar numa mata que não conhece. Você não pensou direito e levou os seus irmãos ao perigo.
— Se veio aqui jogar os meus erros na minha cara, pode ir. Já me sinto mal demais por ter abandonado meus irmãos.
— Vim te oferecer ajuda, hoje será noite de lua cheia e ela comerá seus irmãos. Ainda é cedo, podemos vencer a velha, mas se quiser desistir, sua tribo fica para lá. — Disse apontando com a cabeça.
— Como sei que posso confiar em você?
— Você não sabe. Mas se aceitar minha ajuda, pegue o meu colar e use como um diadema. Volte para a caverna quando for noite e grite por mim.
Ainda que desconfiada, ela aceitou. Pegou o colar no pescoço do animal e viu que uma pedra verde com cara de onça o enfeitava ao centro. Adornou-se com o enfeite afastando o cabelo do rosto e realçando ainda mais sua beleza juvenil.
Aruana não tinha armas e pensou se deveria buscar alguma na aldeia, ou ainda, se deveria contar tudo para os adultos. Teve medo do que poderia acontecer e preferiu enfrentar a bruxa com a ajuda da onça.
Se alimentou de frutas, achou um galho que de algum modo serviria de arma e entrou na gruta quando a lua subiu. Desceu sem fazer barulho e achou a fogueira em brasa. Ela mal enxergou a bruxa perto dos irmãos. Tentou se esconder antes de qualquer coisa.
— Eu sei tudo que se passa em minha casa, você não pode se esconder de mim. — A velha se virou olhando para a sombra onde Aruana estava.
— Grande onça, espírito guerreiro da floresta, me ajude!
Aruana gritou, a índia bruxa gargalhou e as cobras sibilaram caindo do teto sobre a menina. Ela usou o galho para espantar as serpentes jogando-as para os lados.
A onça ainda não tinha aparecido e a curumim se via cada vez mais cercada pelos répteis. A bruxa já estava perto da fogueira balbuciando palavras que ninguém entendia.
De súbito um guerreiro de longos cabelos, invadiu a caverna e lutou nu contra a velha índia usando sua lança. Espantava as cobras e batia na bruxa com sua arma de forma tão rápida que Aruana mal pôde ver o que acontecia.
Ao ser ferida com a ponta da lança a bruxa se arqueou e gemeu. Toda a sua pele mudava, os ossos estalavam e se partiam. Após gritos de agonia ela se transformou em um grande jacaré que rastejou para o riacho e fugiu pela água antes que pudessem matá-la. Todos os insetos, cobras e sapos que ali estavam seguiram a mestra.
Aruana ficou maravilhava com a força e o espírito do guerreiro, quis agradecê-lo e prometer-se para ele. Ao se aproximar percebeu que era uma mulher e não um homem.
— Leve seus irmãos para a aldeia, use sempre o diadema com minha marca e você não será obrigada a deitar com nenhum homem que não queira.
A índia guerreira ia saindo da gruta quando Aruana a interrompeu.
— Qual o seu nome?
— Jaciara.
— Te verei novamente?
— Se quiser me ver, chame o meu nome em noites de lua cheia.
Aruana nada mais perguntou. Soltou e acordou os irmãos, procurou por suas armas e após encontra-las voltou para a aldeia.
Os anciões acreditaram na história dela, já tinham ouvido falar da bruxa metade velha, metade jacaré. Ao verem o diadema com cara de onça nenhum homem teve coragem de propor casamento a Aruana.
Anos se passaram e a curumim se tornou a mulher mais bela já conhecida, todas as donzelas da tribo se adornavam com diademas para se tornarem tão lindas quanto ela e conseguirem o amor verdadeiro.
Ela não foi obrigada a se casar, mas nunca a aceitaram como guerreira. Homem algum entrava em sua oca, mas em noites de lua cheia algumas pessoas diziam ver uma onça entrar lá e sair só pela manhã.
Ainda que muito tempo passasse a caça e a pesca nunca acabaram no lado sul do Itinga o que atraiu tribos rivais. Após perderem uma guerra e serem expulsos do local, os líderes da aldeia deixaram Aruana para trás como exigência dos vencedores.
A índia mais linda já vista teria que se casar contra sua vontade com o líder guerreiro da aldeia invasora. Na hora da cerimônia a obrigaram a tirar o diadema e ela se desesperou. Era de tarde e não seria noite de lua cheia, mesmo assim gritou por Jaciara.
Apanhou por desrespeitar o marido e durante seu choro de desespero viu uma onça saltar da mata e lutar por ela. Havia dezenas de guerreiros, alguns buscaram o arco e flecha, outros os borduna. A onça era forte, mas não seria capaz de vencer tantos oponentes, rosnou para Aruana e ela entendeu.
A índia fugiu chorando e soluçando ouvindo o barulho das flechas que certamente matariam o amor de sua vida. Pouco tempo depois percebeu que atiravam em sua direção, mas não olhou para trás e não se importou com os machucados.
Saltou no rio e nadou sujando-o de sangue. Mergulhou e se deixou levar pela correnteza. Bateu os braços sem pensar e conseguiu sair do outro lado. Um sapo coaxou em sua frente, ainda que fosse dia. Outro fez o mesmo mais acima e ela seguiu os sons.
O barulho a guiou mata adentro e permitiu que ela despistasse aqueles que a perseguiam. Horas depois estava diante da gruta da velha bruxa e entrou sem sentir medo.
— Jaciara era minha filha. — Disse a velha. — Por conhecer os espíritos da floresta eu posso controlar minhas transformações, ela era só uma menina quando foi amaldiçoada, só virava gente em noite de lua cheia. Fizeram isso por não aceitar o meu poder e me impediram de ser pajé.
— Serei sua cacique e você minha pajé, se não aceitar, pode me matar pelo que causei a Jaciara.
— Sempre soube que você seria, pena que custou tão caro. A culpa não é sua, é dos homens.
Aruana andou até o final da caverna e pela primeira vez na vida chegou perto daquele riacho. Agachou-se pegando areia e lama do fundo. Apertou bem entre as mãos e se dirigiu à bruxa.
— Mãe do espírito da lua, por favor, faça dessa areia um novo amuleto de onça para um diadema meu.
A bruxa apontou os dedos velhos e magros e a areia moldou-se em uma pedra de jade no formato de um sapo.
— Sou a senhora dos sapos, cobras e jacarés. Use isso como um colar e não em um diadema.
Aruana não discordava de nada.
— Vague pelas matas e procure outras mulheres como você. Vamos criar uma tribo só de guerreiras. Depois, uma vez por ano, vocês vão se deitar com os mais fortes dando os muiraquitãs como presente. Vamos criar somente as meninas, todos vão ter medo da gente. Vão nos chamar de Icamiabas.

6 comentários:

  1. Gostei do conto, mas achei que ficou meio cristã essa coisa de casamento ficar em casa, cuidar dos filhos e marido... sociedades indigenas brasileira são muito diversificadas, existem as que são monogâmicas, mas elas não foram contaminadas nem pelo mito do amor do período do romancismo nem por concepções burguesas de isolamento familiar após matrimônio.

    Achei que ficou um pouquinho desproporcional em questão de tamanho a parte final do conto, tudo depois que ela voltou me pareceu jogado no final, mas to falando isso pq curti muito o conto e queria ver essa parte mais detalhada ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pelo comentário. Primeiro, eu confesso que não sou um profundo conhecedor da nossa sociedade indígena, pesquisei antes de escrever e o que eu encontrei não disse nada sobre mulheres lutando ou fazendo algo que não fosse cozinhar e cuidar de crianças. O meu lado moderno e cristão deve ter usado o casamento sem que eu pensasse muito sobre, mas as sociedades indígenas dividiam as tarefas e mulheres não guerreavam, tanto que eu pesquisei muito na internet, queria que o conto se chamasse Mulher Guerreira em Tupi Guarani, mas não encontrei a palavra guerreira, a tradução literária do título é mulher guerreiro e deixei assim para demonstrar o machismo da época.
      O conto foi escrito para um concurso e teve quantidade limitada de caracteres, tive que reduzir alguma coisa e optei por fazer um final mais rápido, nada me impede de trabalhar mais sobre ele e deixar o final com tamanho proporcional ao resto. Obrigado pela opinião, sempre nos ajuda a melhorar a escrita.

      Excluir
  2. é madrugada, perdoe meu português...

    ResponderExcluir