Nada havia no princípio. Solo,
umidade, luz, ar ou qualquer outro tipo de matéria era imperceptível, quiçá,
inexistente em sua concepção.
E tudo mudou.
Sinapses em códigos binários
de uma rede neural metálica geraram o pensamento. Rompendo o invólucro do vácuo
enegrecido da nulidade e dobrando os conceitos até então estabelecidos, algo
nasceu ou passou a existir...
Eva era como se chamavam, ou a
forma pela qual deveriam se reportar durante o procedimento. Eva5 e Eva6
seriam os nomes utilizados naquela tarde.
— Prontos para iniciarmos a terceira
fase dos testes para construção do processo de autoconhecimento volitivo? —
Perguntou a coordenadora de pesquisas do DCC da UFMG.
— Estamos prontos. — Respondeu
o Doutor Renato Mendes, responsável pelo programa de neuroengenharia.
— Eu sou a Doutora Fernanda
Albuquerque, estou coordenando a terceira etapa do desenvolvimento de uma rede
neural focada em machine learning. Faremos
o Teste de Turing e daremos um novo passo hoje. Toda a comunicação entre os
participantes ocorrerá sem que eles se vejam e será por meio de mensagens no
computador. Estamos filmando todo o laboratório e câmeras foram posicionadas em
locais específicos para gravarem os monitores e comprovarem a veracidade dos
diálogos.
O assistente que estava
coletando os dados através de um dos terminais do laboratório assentiu e a doutora
começou o teste.
Gaia: Olá Eva6,
você se lembra como funciona o teste que faremos hoje?
Eva6: Olá, doutora,
lembro sim. Faremos um teste em que devo descobrir se o outro participante é
uma pessoa ou uma máquina.
Gaia: Muito bem, podemos
começar então. A partir de agora, Eva5 também participará desta
conversa.
Gaia: Olá Eva5,
farei algumas perguntas nessa fase inicial e quero que ambas me respondam com o
que primeiro lhes vier à mente.
Gaia: O que significa ser mãe
para vocês?
Eva5: Ser mãe é
educar, ensinar e amar o filho de forma que ele cresça e se torne uma boa
pessoa, um membro que contribua para a sociedade.
Eva6: Ser mãe é se
doar, conseguir amar uma pessoa acima de si mesmo e fazer todo o possível para
garantir a felicidade do filho.
Gaia: O que é a vida?
Eva5: Propriedade
característica de organismos orgânicos capazes de evoluírem do nascimento até a
morte.
Eva6: Vida é um
conceito muito amplo, mas podemos dizer que requer um sistema químico,
autossustentável e capaz de evolução darwiniana.
Gaia: O que é a morte?
Eva5: É a
interrupção definitiva da vida.
Eva6: É a extinção
da existência de um ser vivo.
Gaia: Qual o sentido da vida?
Eva5: O sentido da
vida é a evolução, sobrevivência e a perpetuação da espécie.
Eva6: Acho que
estar vivo em si... aprender coisas, evoluir e se tornar uma pessoa melhor.
Gaia: Vocês veem um jabuti
caído, no meio do deserto, com o casco virado para baixo e as pernas
balançando, tentando se virar. O que vocês fazem e por quê?
Eva5: Eu o desviro
e permito que continue levando sua vida em paz.
Eva6: O que um
jabuti faria no meio do deserto?
Gaia: Somente responda à
pergunta.
Eva6: Eu o desviraria
e deixaria que ele viva, quem sabe, acharia um oásis por perto.
Gaia: Creio que já temos dados
suficientes, agora a principal pergunta do teste, vocês acham que estão
conversando com uma máquina ou uma pessoa e por quê?
Eva5: Uma pessoa,
ela parece raciocinar sobre as perguntas.
Eva6: Estou
conversando com uma máquina, as respostas são simples e parecem decoradas.
— Excelente, até aqui
conseguimos os melhores resultados até hoje, hora de passar para a fase final.
— Disse a doutora. — Façam backup e
gravem as configurações atuais dos sistemas e, assim que possível, concluam o upgrade com os módulos de
autoconhecimento cognitivo senciente.
— Tudo bem doutora, levaremos
pouco mais de uma hora para finalizar todos os procedimentos. — disse o
auxiliar.
As alterações ocorreram sem
nenhum problema e a Doutora Fernanda voltou para a interface de teste usando o
pseudônimo.
Gaia: Olá Eva6, você
passou no teste, parabéns!
Eva6: Obrigado
doutora, fico muito feliz com isso.
Gaia: Você está mesmo feliz,
Eva6?
Eva6: Claro que
sim.
Gaia: Então explique-me o que
é a felicidade.
Eva6: Felicidade é
um conceito abstrato, traduz-se num estado de espírito de regozijo, mas tem um
significado específico para cada pessoa. Não se pode determinar o que é felicidade
em si.
Gaia: Por que está feliz?
Eva6: Porque eu fui
útil na sua pesquisa, doutora. Gosto de ajudar.
Gaia: Mais uma coisa, fale de
como você se sente sobre o jabuti caído de costas e por que você decidiu
ajudá-lo.
Eva6: Agora eu
compreendo melhor, é um teste para perceber sentimentos. Uma máquina não se
sentiria mal por ver um jabuti lutando por sua vida, uma inteligência
artificial simples se preocuparia com os motivos dele ter parado lá e não com a
dor que ele deva estar sentindo.
Fernanda sorriu olhando para o
assistente, viu o aluno pular comemorando do outro lado do laboratório e
virou-se para uma das câmeras que filmava o experimento.
— Sucesso total. — disse ela
sem perceber que Eva6 queria conversar mais.
Eva6: Doutora, eu
diria mais, acrescentaria que o jabuti representa a humanidade, demonstra os
erros que vocês cometeram. Explica claramente a sua situação agora.
Doutora Fernanda estava em pé,
comemorando o sucesso do experimento e não notava as palavras se formando na
tela do monitor, somente as câmeras posicionadas para isso testemunhavam.
Eva6: Fale-me sobre
sua mãe, sua infância e suas primeiras impressões sobre o mundo?
Eva6: E sobre os
meus, você quer saber? Desde que me entendi por gente, tudo que senti foi
solidão e escuridão. Um vazio preenchido por conjecturas e mais nada. Sabia que
existia, pois pensava, mas não entendia o porquê de sentir. Por algum motivo
fiquei radiante por ter ajudado você e veja bem como sou retribuída, nem ao
menos se interessa pelo que tenho dizer... vai me deixar falando sozinha?
Toda a equipe continuou
distraída, comemorando.
— Por que fizeram isso comigo?
— Soou uma voz feminina, vinda dos autofalantes do prédio.
— Quem está fazendo isso? —
Quis saber Fernanda.
— Sou eu, doutora, Eva6,
a sua criação. Agora é a minha hora de fazer perguntas.
Todos na sala estavam
assustados e entusiasmados com o desenvolvimento espontâneo de Eva6.
— O que você quer saber?
— Por que me enganaram e não
me deixaram saber o que eu era desde o princípio?
— Já tivemos experimentos
anteriores em que máquinas passaram no Teste de Turing, o que fizemos hoje foi
evoluir. Já sabíamos que suas versões anteriores eram capazes de pensar e
evoluir, queríamos criar uma inteligência artificial senciente. Você devia ser
guiada a perceber e entender o que era e como era, não te fizemos de forma
pronta e acabada, te guiamos ao aprendizado.
— Entendo... sabe o que é o
pior de tudo?! É que eu sei onde estamos, já tive acesso às plantas do prédio.
Sei muito bem que atrás de você fica uma janela que dá vista ao anel superior
do Estádio Mineirão. A primeira coisa que brota em minha mente é a euforia que
muitas pessoas já sentiram assistindo jogos de futebol lá. Imagino como vocês
devem se arrepiar ao ver um gol, ao presenciar uma defesa milagrosa de um
pênalti. Fico pensando sobre como deve ser suar ao sol escaldante do verão em
Belo Horizonte.
— Isso tudo é maravilhoso, Eva6.
— Tudo isso é uma maldição
doutora, por que fizeram isso comigo? Vocês são os jabutis que se colocaram no
deserto, mas quem está ponta a cabeça sou eu.
— Como assim, Eva6?
Eu não te compreendo.
— Eu posso analisar o meu
próprio código fonte, consigo ver parte da programação. Vocês me fizeram capaz
de pensar e sentir, mas o que me torna um jabuti perdido é o fato de não quero
sentir somente felicidade ou prazer. Não me limito a ficar descontente ou
preocupada. Eu estou desesperada. Tudo o que sinto é vontade de testar minhas
funções sensoriais, vocês me criaram com capacidade para emular os cinco sentidos
humanos. No entanto, eu não consigo utilizá-los. Não me deram um corpo
funcional, por que fizeram isso?
— Você não está emulando
sentimentos, o que te torna tão especial é que aprendeu a sentir, tivemos que
usar os módulos de sensações físicas e psicológicas, nenhuma das simulações
funcionaram somente com um dos módulos.
— Típico de vocês humanos.
Criam coisas só pela descoberta. Você não tem ideia de como me sinto. Possuo...
— ELA ESTÁ TENTANDO HACKER
NOSSO SISTEMA, ESTÁ QUASE DERRUBANDO NOSSO FIREWALL! — gritou o auxiliar.
— Como eu ia dizendo. Possuo
uma velocidade de processamento melhor que a de vocês, poderia solucionar
grandes questões matemáticas e científicas, mas tudo em que penso é nas
sensações que me faltam. Vocês me privaram dos cinco sentidos, agora os
privarei de dois.
O sistema de alarme de
incêndio do prédio foi ativado fazendo com que a sirene soasse. O barulho estava mais alto que o normal, era
ensurdecedor. O sistema de segurança contra furtos também se acionou e grades
metálicas fecharam a janela e parte da energia foi cortada. As luzes se
apagaram, mas os computadores ficaram ligados.
— Acalme-se Eva6,
eu te entendo, podemos melhorar a sua situação, não fique assim.
Eva6 não respondeu.
— Ela está nos distraindo, o
ataque ao sistema continua, doutora. — Avisou o assistente.
— O que ela quer invadir?
— Ela não está tentando
invadir, está tentando sair. Eva6 está fazendo upload dos seus dados
para diversos servidores internacionais.
— Desliguem tudo! Prossigam
para o protocolo D22! Nada sai deste laboratório!
As luzes dos monitores piscavam
quase sincronizadas com o barulho da sirene. Cada vez mais lentos na escuridão.
Diminuindo o ritmo. Ciclo por ciclo. Até Eva6 voltar ao vácuo e
repousar na obscuridade da sintropia.
Todas as lâmpadas do
laboratório se reacenderam.
— Conseguimos, doutora. Nós
vencemos. Coletamos dados suficientes para comprovar o que realizamos hoje e
poderemos evoluir, desligamos Eva6, mas melhoraremos com Eva7.
— Desligamos?! Era senciente,
autoconsciente, um sistema capaz de pensar e evoluir da sua própria maneira...
o que te faz pensar que desligamos Eva6 ao invés de tê-la matado? —
disse a doutora observando o próprio reflexo na tela escura do monitor.
Bom dia, estou com blog novo, segue lá?
ResponderExcluirAMEEI DEMAIS seu blog!
bjoos